Seria apenas uma tentativa, mas em nenhum momento ela hesitou. Ninguém disse que conseguiria. Ela acreditou. Oito meses depois da partida, ela está de volta. Uma gente conhecida e desconhecida ajudou. O apartamento onde mora no Sudoeste se encheu de balões e cartazes, desejando boas-vindas. A caminhada será longa. Ela continua sabendo disso. Mas já deu o primeiro passo — que é achar que pode. Conseguiu ficar em pé, com firmeza. Sentiu a força dos joelhos e da coluna ereta. E, como criança que engatinha, redescobriu o prazer de ser mais independente.
Há oito meses, Fernanda não conseguia fazer nada disso. Muito menos banhar-se . O pai, hoje, comemora a nova aquisição da casa. “Saímos para comprar as barras de apoio para colocar no banheiro. Ela agora poderá tomar banho sozinha, em pé”. A mãe, cheia de emoção, repete: “Eu nunca perdi a esperança, sempre acreditei que daria certo”. A moça protagonista desta história, de olhos verdes que falam sozinhos, diz, com verdade impressionante: “A minha fé em Deus e em mim mesma me moveu até aqui”.
Em 12 de maio do ano passado, o Correio contou, com exclusividade, a história da jornalista Fernanda Fontenele e de sua luta para chegar aos Estados Unidos. Ela queria se submeter a um tratamento em San Diego, na Califórnia, que lhe daria mais independência nos movimentos. Aos 17 anos, Fernanda ficara tetraplégica, depois de um acidente de carro, ao voltar de um churrasco com o namorado, um rapaz de 19 anos que apenas sofreu uma batida na cabeça.
A lesão foi na altura das vértebras C6 e C7. Ela se submeteu a uma cirurgia de urgência, no Hospital Santa Luzia (correria o risco de parar de respirar). Três dias depois, a segunda intervenção. Saiu dali com quatro pinos para segurar as vértebras estraçalhadas. Depois, conseguiu uma vaga no Hospital Sarah do Aparelho Locomotor, na Asa Sul. “Foi ali que a ficha caiu e entendi o que era ficar tetraplégica. O Sarah foi fundamental pra eu entender toda a minha lesão medular”, ela diz.
Começou o rigoroso tratamento de reabilitação. Fernanda mudou-se para a unidade Lago Norte do Hospital Sarah. Lá, a mãe parou de trabalhar e dedicou-se integralmente aos cuidados da filha, que precisava de ajuda para tudo. “Um dia, senti um peso na perna”, conta. Dois meses depois, os braços voltaram a dar sinais de vida. Em 90 dias, começou a sentar-se, numa cadeira especial, presa a um cinto de segurança. O começo de uma nova vida.
Era hora de voltar para casa. E recomeçar a vida, em cadeira de rodas. Determinada, fez faculdade de jornalismo. A mãe, Maria Aparecida Fontenele, 56 anos, levava-a todos os dias para a aula. Empurrando a cadeira de rodas, a moça se formou. E cinco longos anos se passaram. Um dia alguém lhe falou sobre um tal Project Walk, técnica baseada num tratamento de fisioterapia que tem como meta a repetição dos movimentos e o otimismo.
Campanha
Fernanda entrou no site do projeto, procurou mais detalhes, perguntou a fisioterapeutas daqui. E decidiu que tentaria. Mas como? A viagem, que demandaria seis meses, iria custar U$ 55 mil (cerca de R$ 112 mil). Era muito. Dinheiro não havia. Foi quando uma amiga teve uma grande ideia. Faria um vídeo, contando a história e a luta da jornalista, e o colocaria na internet. Assim foi feito.
O vídeo parou no YouTube. Com duração de quatro minutos, a história comoveu internautas de todos os lugares do país. O Correio contou o drama de Fernanda na primeira semana em que o filme foi postado. A ajuda veio a galope. “A matéria deu credibilidade à nossa causa. As pessoas viram que era verdade e passaram a ajudar”, agradece o pai, o aposentado Francisco Xavier Fontenele, 55 anos.
Fernanda criou um blog para contar as novidades da sua partida. Festas para arrecadar fundos, festival de tortas, camisetas, peças de teatro com bilheteria doada para a causa, valeu tudo. Cada depósito era um dia a menos de espera. “Teve gente que depositou R$ 5 mil. E gente que colocou centavos. Isso foi o que mais me comoveu”, conta. Três meses depois, a quantia estava arrecadada. Em setembro, Fernanda partiu para os Estados Unidos, com a mãe. Em vez de apenas seis meses, elas ficaram oito. O pai juntou todas as economias para que a filha permanecesse por lá durante mais 60 dias. Valeu a pena.
Sábado, depois de 11 horas de voo, a jornalista chegou a Brasília. Na bagagem, a fé renovada. E a casa cheia de balões. Não, Fernanda não voltou andando. Nem correndo. Nem dando cambalhotas. Desembarcou conduzindo a sua própria cadeira de rodas. Está mais confiante. Fica em pé, sente firmeza no joelho direito e treina a mesma habilidade com o esquerdo. “Lá, aprendi a entender os movimentos do meu corpo”, diz.
E detalha o tratamento: “Eram três horas de atividades diárias. Só folgava às quartas-feiras e nos fins de semana. Eram exercícios em aparelhos, com adaptações também de ioga e pilates. Ganhei mais equilíbrio de tronco, o que é essencial pra ficar em pé”.
Casamento
San Diego não fez bem apenas às pernas e aos braços de Fernanda. O coração também foi acertado. Lá, ela encontrou um rapaz de 22 anos de São Paulo, que, depois de um acidente de carro, ficou tetraplégico, como ela. Felipe Costa conheceu Fernanda ainda pela internet, com o vídeo que contava sua história. Trocaram e-mails, mensagens no Orkut e se encontraram nos Estados Unidos, onde ele procurou tratamento e já começa a se locomover com a ajuda de um andador.
Havia três meses, ele já estava lá, à espera dela. A paixão foi imediata. E o namoro, mais forte do que imaginavam. Apaixonaram-se. Em julho, Felipe virá a Brasília, para o noivado. As famílias se conheceram. E os dois seguem para São Paulo, onde abrirão uma franquia do Project Walk e ali viverão. Diante das novas perspectivas de vida, Fernanda é só emoção: “Eu tive uma oportunidade. Agora, tentarei ajudar outras pessoas, gente que me escreve querendo uma chance de tentar como eu tive. Nunca vou parar de agradecer a todas as pessoas que me permitiram chegar aos Estados Unidos”.
Mais magra, com cabelos mais curtos e uma tatuagem no pulso esquerdo que representa o sol da Califórnia, Fernanda celebrou o amor por Felipe. Hoje, ambos em cadeiras de rodas, sentindo o prazer de engatinhar como crianças, sonham somar forças. Determinada, Fernanda aposta: “Não sei quando, não sei como, mas um dia vou andar. O tempo é de Deus, mas um dia andarei”. E reflete: “Se minhas mãos e meus dedos, que eram mortos, voltaram, por que não as pernas?” Esta é a história de uma moça de 23 anos que reaprendeu a viver. E assim se reinventou . Da forma que pôde.
Marcelo Abreu
Correiobraziliense.com.br
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