Ela, 84, e há 15 está com Alzheimer. Ele lê as muitas cartas que ambos fizeram um para o outro. Beija-a e a chama de minha cheirosa. Não se sabe se ela escuta o que ele diz. José jurou que seria para sempre, enquanto vida houvesse.
Ela diz, numa carta a lápis, escrita assim pela falta de caneta naquele lugar tão improvável: “Talvez você não sinta saudade de mim... Pois eu tenho saudade de você. Não tem diversão que me faça esquecer você. José, você não acredita, mas eu posso amar sem sofrer. Depositei todo meu amor em você. Não sei se você aceita ser depósito do meu amor. Se te agravei, perdoe-me, meu amor...”
Ele responde, com letra firme e apaixonada: “Com o coração cheio de saudade escrevo estas linhas. Lindaura, sei que tenho lhe dado desgosto em andar pouco em sua casa, sei que você tem queixa de mim por este motivo, mas eu lhe peço mil perdões...E lhe prometo não lhe fazer mais este desgosto, pois frequentarei mais sua casa. Lindaura, eu não lhe deixo por ninguém, lhe amo de todo coração. Não quero dar motivo de ingratidão, pois prestei juramento de lhe amar por toda minha vida...”.
Essas duas cartas foram escritas há 63 anos. Ela, há mais de uma década, está sobre uma cama. Não reconhece ninguém. Não fala, não anda, não demonstra mais emoção. Nem afeto ao homem que amou a vida inteira. Ele, ao contrário, passa a mão sobre os cabelos finos dela. E lê o que ele e ela escreveram um dia um para o outro. Ele sempre se emociona. “Mas nunca choro perto dela. Engulo o choro. Não quero que ela sofra mais”, ele diz.
Ela, quando ele lê as cartas, fica em silêncio. Talvez ouça, talvez não. Os olhos sem brilho silenciam mais ainda. Ela tem Alzheimer — doença provocada pela atrofia do cérebro. É progressiva, irreversível e com causas e tratamento ainda desconhecidos. Começa por atingir a memória e, aos poucos, as outras funções mentais, acabando por determinar a completa ausência de autonomia dos doentes, tornando-os completamente incapazes.
E esta é a história de José Carneiro Almeida e sua eterna e única Lindaura. É a história de um amor que nem o Alzheimer foi capaz de fazer esquecer. Ele a ama como se fosse o primeiro dia. Ela disse isso a ele em várias cartas. E hoje, naquela casa muito simples no Núcleo Bandeirante, com paredes decoradas por azulejos azuis, José, de 85 anos, lê, apenas lê, o que um dia sua Lindaura, 84, também leu.
Ele guardou todos os rabiscos de amor que trocaram por toda a vida. É o que o alimenta. E o que dá força para cuidar de sua amada. “Ela foi minha inspiração divina. Achei ela a mais simpática de todas as que moravam naquelas terras.” José amou Lindaura desde que a conheceu, em Caiçaras, sertão do Ceará. “A gente era primo distante”, conta.
Menino de calça curta, aos 9 anos, eles brincavam juntos. “Ela tinha 8. Sempre foi danada...” Aos 12, estudaram com a mesma professora. “Não tinha escola. A professora ia até as fazendas e dava aula pras crianças da redondeza”, diz. Aos 16 anos, Lindaura era moça. Espichou rápido. “Eu, não, demorei no crescimento.” Bonita, logo a moça despertou a atenção dos rapazes da região. “Todo mundo cobiçava ela”, lembra José.
Ciúmes
Aos 17 anos, Lindaura arrumou um noivo. José quase morreu. Na verdade, José morreu todas as vezes em que pensou ter perdido sua Lindaura. “Mas ele tratava ela mal. E ela nunca foi mulher de aceitar isso.” O noivado terminou. Ainda assim, de longe, José tinha medo de se aproximar. Aos 18 anos, ele nunca havia namorado ninguém. No fundo, ele sabia que um dia ela seria dele. E assimfoi, anos depois.
Lindaura teve outros pretendentes. José continuava sozinho. “Um dia, ela me mandou lembranças. Sabia que tinha alguma coisa naquele recado”, diz. Tempos depois, a primeira carta dela para ele — eles moravam em fazendas a menos de 2km um do outro, e as cartas eram levadas por gente que jamais os denunciaria.
O namoro começou por meio de cartas. Depois, José se encheu de coragem cearense e enfrentou os parentes. Assumiu, aos 22 anos, seu amor incondicional por Lindaura. Beijou-a pela primeira vez. Na verdade, era a primeira vez que beijava uma mulher. Sentiu-se nas nuvens. “Ela foi a primeira e única mulher da minha vida”, ele diz, com um orgulho incontido.
Junho de 1929. José e Lindaura se casam. Ela, de vestido de noiva feito em Sobral. Ele, de terno azul-piscina. “A Lindaura sempre foi muito sincera. Disse, no dia do casamento, que não tinha gostado da cor”, ele conta, às gargalhadas. De terno azul-piscina que Lindaura detestou, José subiu ao altar. Juraram amor eterno.
Tiveram oito filhos. Seis estão vivos. José plantava e colhia na lavoura. Lindaura ensinava as letras para crianças da região. Na própria casa, uma fazenda castigada pela falta de chuva, ela arrumou uma mesa de madeira, juntou um banco grande e, para matar a sede dos alunos, dois potes d’água. Nascia uma escola.
A seca, de tempos em tempos, expulsava José do Ceará. Numa dessas, ele migrou para o Piauí. Lá, nasceu uma de suas filhas. Em agosto de 1967, com Lindaura e os filhos, chegou a Brasília, atrás de dias melhores para a família. Instalou-se no Núcleo Bandeirante, de onde nunca mais saiu.
A Lindaura, coube a educação dos filhos e os cuidados da casa. José abriu um pequeno comércio de madeira. Mas nem só a tarefas domésticas ela se dedicou. Virou uma espécie de líder do bairro. Lutou para que um hospital fosse construído na cidade. Ia à televisão, exigia, reivindicava. Tornou-se, sem saber, porta-voz de várias lutas. Saiu até em jornal do Núcleo Bandeirante.
José apreciava a coragem da mulher. “Ela sempre foi a matriarca da família. Segurava tudo e buscava a solução para os problemas. Nunca desanimou. Tinha uma saída pra tudo”, diz a filha Maria das Graças Carneiro, 59 anos. “Foi um choque pra nós quando tivemos a certeza da doença. Não combinava com ela”, emenda a outra filha, Marlene Almeida, 56.
Doença avassaladora que demorou anos para ter diagnóstico definitivo. Primeiro, há 15 anos, antes de completar 70, Lindaura apresentou um comportamento agressivo. Queria bater nas filhas como se elas ainda fossem meninas. Brigava com as pessoas — até mesmo com José — e passou a ter estranhas manias (lavava e desinfetava coisas sem a menor importância, como saco de lixo).
Depois, veio uma tristeza infinda (não quis mais comer nem tomar banho). Era a depressão. Ela ficava horas sentada na varanda, olhando para as pessoas que passavam pela rua onde sempre viveu desde que chegou a Brasília.
Por fim, veio o esquecimento de tudo e todos. Dela mesma. Até de José. “Ela chamou meu nome pela última vez no dia 17 de abril de 2003”, ele diz, com angústia. “Tem hora que me revolto, depois agradeço a Deus por tudo que vivemos.” Sobre uma cama igual à de hospital, aos cuidados de José, dos filhos e de três auxiliares que se revezam dia e noite. Lindaura não sabe mais se vive.
Na sala da casa simples, retratos na parede. José e Lindaura em vários momentos. Ele lê os escritos antigos. Passa a mão sobre a trancinha que uma das cuidadoras fez nos cabelos ralos da mulher que amou aquele homem como se fosse um conto de fadas.
José ensaia coisas que ainda gostaria de dizer à amada. E diz: “Você tá me ouvindo, minha cheirosa? Eu ainda sou aquele que brincava quando criança. O juramento de amor que lhe fiz ainda está de pé”. Lindaura arregala os olhos opacos. Não se sabe se ouve. José continua: “Tô aqui, minha nega. Tá com fome? Tá com sono? Vamos merendar? Tem mingau”. E a beija no rosto como se fosse a primeira vez.
Emocionado, conta uma história: “Nosso último filho, o Bosco, nasceu aqui. Lindaura tinha 44 anos. Eu fiquei preocupado. Ela me disse pra não ter medo, que tudo daria certo. Nosso filho nasceu, perfeito. Lindaura sempre foi forte, mais do que eu”. Em cima daquela cama, um fiapo de gente, uma mulher com Alzheimer. Ao lado dela, engolindo o choro, um homem de 85 anos ainda fala de amor como se adolescente fosse. “O amor é infinito”, ele diz. José tem permissão para falar de amor.
Marcelo Abreu
Correiobraziliense.com.br
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