Desde 1995, quando a world wide web se popularizou, o mundo começou a passar por mudanças comportamentais em uma velocidade cada vez mais crescente. Novos hábitos surgiram para transformar e aproximar sociedades, e uma delas, em particular, a digital, vem se tornando cada vez mais sofisticada e responsável por uma espécie de nova ordem mundial. A comunicação, é claro, está entre as áreas mais atingidas por essas modificações, e se processa a cada dia mais rápida e eficiente. Passados 15 anos, a internet continua a ditar novos hábitos e, agora, está fazendo com que os livros saiam do papel e saltem para a telinha do computador.
Mas isso não significa que eles irão sumir das estantes e da biblioteca — pelo menos por enquanto. “Acreditamos que o livro digital pode universalizar ainda mais a leitura”, disse Rosely Boschini, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL). Segundo ela, a tecnologia deve ser encarada como mais uma alternativa de acesso à leitura, em que o livro digital seja pensado também na sua capacidade de atingir pessoas que convivem com a tecnologia. “O contingente de pessoas com acesso à internet e à tecnologia é grande, principalmente entre os jovens. A entrada do livro digital na vida das pessoas é irreversível”, sentencia.
A cultura digital e suas tecnologias têm permitido a digitalização de imagens, documentos, artigos, entre outros produtos da criação humana. Isso tem crescido de uma forma espantosa nos últimos cinco anos, muito em função do barateamento da tecnologia, que permite a difusão da informação. Além disso, projetos estruturantes de digitalização de acervos povoaram a internet. Com isso, pesquisadores, professores, estudantes e curiosos passaram a ter acesso a obras significativas. Um exemplo dessa preciosa oportunidade é a Biblioteca Brasiliana (1) de Obras Raras da Universidade de São Paulo (USP).
Lá estão disponíveis para baixar em seu micro obras importantes, como a primeira edição de Viagem ao Brasil, o livro do viajante alemão Hans Staden, que esteve duas vezes na recém-descoberta colônia portuguesa, publicado no século 16, na Alemanha e Cultura e opulência no Brasil, de 1711, assinada pelo padre italiano João Antônio Andreoni. Ele foi um dos três jesuítas que acompanharam o padre Antônio Vieira à Bahia, em 1685. O livro é considerado um dos primeiros tratados sobre economia do Brasil colonial — só existem três exemplares no país. “É importante frisar que a tecnologia é ferramenta de conhecimento. Portanto, ela tem capacidade de despertar o interesse de quem não tem hábito pela leitura”, salienta Rosely.
Maiara Cristina da Fonseca, 24 anos, é uma jovem mergulhada na cultura digital. A estudante garante que foi por conta da internet que se interessou pela leitura. Maiara tem um blog que usa como diário e lá coloca seus pensamentos. “As pessoas comentam. Muitas citam frases e textos de autores que me deixam curiosa e fazem com que eu corra atrás de quem os escreveu. Faço a busca e acabo me deparando com as obras do autor. Foi dessa forma que li quase todos os livros de Machado de Assis, pela internet, claro”, relata. Hoje, a jovem costuma baixar, pelo menos, três livros por semana. “Os que não dá, compro nas livrarias digitais. Em dois cliques, o livro tá lá na minha mão (sic). É mais prático, não saio de casa e não contribuo para o desmatamento”, conclui.
Educação
Mesmo com a curiosidade aguçada pela interatividade promovida na internet, a educação ainda é a melhor forma de estimular a leitura. Segundo Pedro Luiz Puntoni, professor de história da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do projeto Biblioteca Brasiliana Digital de Obras Raras da instituição, o professor executa um papel fundamental em termos de estímulo. “É na sala de aula que o aluno adquire o hábito de ler, com o professor provocando discussões, sugerindo leituras para gerar o debate”, analisa.
Foi dessa forma que Morvan Rodrigues, de 31 anos, chegou à leitura digital. Mesmo adepto da internet há 12 anos, foi na sala de aula que o publicitário adquiriu o hábito da leitura digital. “O professor dissecava os textos nas aulas e eu buscava o autor na internet. Como trabalho no computador, isso fez com que eu descobrisse outras obras e baixasse para ler”, conta. Morvan tem cerca de 30 livros em sua biblioteca digital e se diz um entusiasta desse novo hábito. “Nas bibliotecas digitais há milhões de livros on-line que eu posso ler. Um artigo publicado hoje do outro lado do mundo, por exemplo, tenho acesso quase que instantaneamente”, comemora Rodrigues.
1 - Preciosidades
A Biblioteca Brasiliana de Obras Raras nasceu do espólio do empresário José Mindlin, leitor voraz e apaixonado por literatura. Em uma das salas da biblioteca, que faz parte do sistema USP, os livros são do século 19, todos de literatura brasileira. Lá estão quase todas as primeiras edições das obras de Machado de Assis. Há ainda as primeiras edições dos dois romances mais lidos no século 19: O guarani, de José de Alencar e A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo. Na Biblioteca Brasiliana Digital, o tempo dá um salto: o visitante pode conhecer um robô que lê 2,4 mil páginas por hora.
Dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Observatório do Livro e da Leitura, em 2008, mostram que mais de 4,6 milhões de brasileiros já liam livros digitais na época. O levantamento também indicou que 7 milhões de pessoas têm o costume de baixar livros gratuitamente pela internet no Brasil. “Com o desenvolvimento dessas novas tecnologias, não tem muito como escapar desses novos suportes de leitura. Boa parte da juventude de hoje lê mais pelo computador”, constata Puntoni.
O professor afirma que a cultura digital democratiza e difunde a informação, principalmente o livro. De acordo com ele, o suporte da leitura por meio dos livros é um fato muito recente na história do mundo. “Antes o livro era um objeto pouco difundido, no qual só a elite tinha acesso; na idade média só os monges. A difusão da leitura faz com que o acesso se dê em outras plataformas. Não acho que a gente deva ter uma postura conservadora e dizer: ‘não, o livro é o único objeto para praticar a leitura’. A internet vem para somar, não competir”, defende.
Glênia Duarte, de 46 anos, faz coro com Puntoni. A cenógrafa se tornou adepta à leitura digital há dois anos, porém, não largou o hábito de comprar livros no formato tradicional. “Não abro mão de livros na minha estante. Adoro tê-los por perto para folhear, mas a internet me abriu um mundo na leitura infinito, em que espaço físico não é problema”, diz. “Para mim, uma coisa não anula a outra. As duas têm seus valores bem distintos, cabe avaliarmos o que é melhor para nós”, analisa.
Sociedade cibernética
Para a presidente da CBL, o mundo digital está sendo universalizado. “É impossível hoje o desenvolvimento da sociedade sem tecnologia”, afirma Boschini. Segundo ela, o livro, a leitura e a produção literária devem estar dentro desse contexto. Afinal, são instrumentos importantes de educação e cultura. “Acreditamos que o livro impresso tem atração física, é bastante arraigado na nossa cultura e, por conta disso, continuará existindo. No futuro, o que acontecerá é a convivência harmoniosa de mídias”, prevê.
Puntoni acha que daqui há um século, o livro será comparado a uma obra-prima, como a Monalisa, de Leonardo Da Vinci. “Se em 15 anos a internet promoveu tanta mudança cultural, imagine em 100 anos”, indaga. Puntoni acredita que no próximo século os nossos descendentes vão olhar para trás e dizer : ‘aquele povo derrubava árvore para produzir livro, que loucos’! Ele afirma, porém, que as pessoas vão continuar admirando os livros físicos por conta do significado que eles têm como instrumento fundamental para a construção da cultura ocidental.
Se depender de Arthur Tadeu Curado, 31 anos, o livro jamais acabará. O ator é avesso à leitura digital. “Já tentei, não funciona. Sou um leitor à moda antiga”, afirma. Para ele, o ato de ler está relacionado com o lazer .“Para mim, é importante ter o livro físico, escolher e tocar a capa, ir a uma livraria e ficar horas até escolher um exemplar. Tudo faz parte de um ritual que também é lazer”, ressalta.
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