Era uma tarde comum, 21 anos atrás, durante o dia de trabalho em um salão da Asa Norte, quando o cabeleireiro carioca Wanderley Estrella, 47, sentiu as dores que eram o anúncio de uma mudança radical em sua vida. A cada minuto, as pontadas na barriga ficavam mais fortes, o suor escorreu frio e o enjoo veio logo em seguida. Uma semana depois, a fisionomia de Wanderley havia se transformado. O homem alto, atraente e saudável parecia ter desaparecido. Tinha perdido 20kg.
O tormento não acabava. Um colega de trabalho aconselhou-o a fazer o teste de HIV. “Aqueles sintomas não eram normais. Fui ao laboratório com a certeza de que daria positivo”, lembrou Wanderley. A intuição estava correta. Ao receber o resultado, ele sentiu como se o chão tivesse desaparecido debaixo de seus pés. A vida se mostrou poderosa, inesperada, dona de si. Um momento que aconteceu em algum dia dos 10 anos anteriores à descoberta do “positivo” deixou marcas eternas em Wanderley. “Eu fui contaminado entre os anos 1978 e 1980. Eu era jovem, na noite do Rio de Janeiro. Naquela época, o sexo era livre. Nem se falava em camisinha. Foi na mesma época do Cazuza”, lembrou.
À época do diagnóstico, Wanderley já estava em Brasília, lugar para onde se mudou em 1984. Veio para passar três dias e acabou fixando residência. Apaixonou-se pela cidade-parque. Tudo era glamour antes do tal “positivo.” Acostumado a cuidar das cabeças mais exigentes de Brasília e a frequentar locais de classe A, ele se viu diante de um monstro: o preconceito. Achou que ia perder o emprego, que a vida acabaria ali. “Naquele tempo, quando você recebia um resultado positivo, era o mesmo que comprar um caixão”, disse. Mas o chefe foi sensato, apoiou o funcionário dedicado. “Ele me disse: ‘Agora você só tem uma opção, e é continuar a vida, tomar o coquetel e trabalhar’”.
Abandono
Os amigos, porém, desapareceram. Não queriam apertar a mão de Wanderley, beijá-lo, dividir um copo. Compartilhar o mesmo talher ou banheiro? Nem pensar. A ignorância sobre as formas de contágio do vírus afastaram até as pessoas mais próximas. “Parecia que um buraco enorme tinha sido aberto ao meu redor. A rejeição não precisa ser expressa em palavras, a gente sente no olhar das pessoas.” O cabeleireiro, acostumado a ser querido, não resistiu a tanta hostilidade. Entregou-se ao alcoolismo. Vendeu carro e casa conquistados com muito esforço para mergulhar na bebida. “Era minha única fuga.”
Wanderley aprendeu, ainda menino, a se virar e a superar desaforos. Saiu de casa pré-adolescente. Não se sentia aceito, não pertencia à própria família. Enfrentou o primeiro preconceito, aquele contra homossexuais. “A minha orientação sexual era considerada uma doença entre os meus familiares. Saí sozinho no mundo e fui trabalhar em um salão de elite do Rio de Janeiro. Rapidinho eu estava aparecendo nos jornais cariocas e começou a aparecer parente querendo me ver. Mas era tarde.” Com as dificuldades, Wanderley aprendeu a renascer.
Força
Depois da crise, não demorou muito e ele se reergueu, parou de beber. “Encontrei força em Deus. Ele me fazia pensar: se eu posso viver uma vida normal, porque vou desistir? Tenho todo direito de ser feliz”, lembrou. Quando decidiu voltar a trabalhar, em 2002, Wanderley encontrou espaço no Salão Hélio Diffusion, um dos mais badalados de Brasília. Não escondeu de ninguém que era portador de HIV. Decidiu que o preconceito não iria vencê-lo ou abafar sua autoestima.
Para compor um novo Wanderley, ele adotou um visual peculiar. Está sempre de cavanhaque e lenço na cabeça. O acessório é multifuncional, esconde a calvície e dá um charme ao mesmo tempo. “Escolhi levar a vida de cabeça erguida.” A relação com as clientes nunca foi prejudicada pela doença. Ele atende mais de 45 homens e mulheres por dia em busca do corte ou tintura perfeita para os cabelos. “As clientes me perguntam se eu já tomei o coquetel, se está na hora do remédio”, conta. Com os avanços da medicina, Wanderley, que antes tomava 23 remédios por dia e sofria com os efeitos colaterais, começou a ingerir nove comprimidos diariamente. Há dois anos, seus exames resultam em carga viral indetectível. “Eu chamo o momento de tomar o remédio de dar ração aos meus bichinhos. Depois é hora da ração da bichona aqui. Bom humor é essencial”, disse, em meio a gargalhadas. Mas isso não bastava. O cabeleireiro queria alertar a todos sobre os riscos do sexo sem segurança. Quem ele atende no salão e recebe até preservativos de presente. “Tem algumas pessoas que falam: ‘Eu não preciso disso’. E eu digo: ‘OK. Então você vai se dar mal como eu me dei’. E elas mudam de ideia”, disse.
Luta
Em 2007, Wanderley precisou ser internado. “Fiquei cinco meses na Fraternidade Assistencial Lucas Evangelista (Fale). A maior universidade da minha vida foi ouvir as outras pessoas que estavam internadas lá, conheci várias realidades. Levantei de lá disposto a pedir meu emprego de volta”, relatou. O patrão recebeu Wanderley de braços abertos e ainda ofereceu a ele um cantinho para morar. “Eu só tinha uma sacola de roupa, quando voltei.” Naquele momento, Wanderley sentiu que podia contar com a vida outra vez. Ficou agradecido. Todo mês, ele e outros colegas de trabalho vão à Fale para oferecer cuidados de beleza aos pacientes. No próximo domingo, o ex-paciente estará lá.
O ativismo de Wanderley é contagiante. O dono do salão onde ele atua já fazia trabalhos sociais antes de conhecê-lo, mas depois de ver de perto a rotina de um portador de HIV se engajou ainda mais na luta contra a doença e apoia projetos ligados ao tema. Além da distribuição de camisinhas no salão, há até cartões-postais com o tema anti-HIV. Os profissionais do Hélio também participam de iniciativas da organização Cabeleireiros contra Aids, um projeto da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Cultura e a Ciência (Unesco).
Hoje, três anos depois, Wanderley conseguiu se reinventar. “Um portador de HIV só precisa de quatro coisas para viver bem: tomar a medicação sempre na hora certa, se alimentar bem, sexo seguro e não usar nunca palavras negativas”, afirmou. Wanderley, em breve, vai realizar um dos seus sonhos: está acabando de construir uma “mansão”, como ele mesmo diz. Cheia de pássaros e verde. “A gente é como uma nascente de água pura. Tem um curso a seguir. Quando surge algum obstáculo, como as rochas, por exemplo, a nascente faz uma cachoeira. O ser humano também pode ser assim e se superar sempre”, ensina. Wanderley não se cansa de comemorar o fato de estar no mundo. “Quando eu completar 50 anos, quero fazer uma megafesta na minha casa nova. Vai ser à moda carioca, com muita feijoada. Uma celebração da vida”, concluiu.
Leilane Menezes
Correiobraziliense.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário