A natureza, além de sábia, às vezes é surpreendente!
Ela sempre soube que tudo seria muito difícil pra ela, desde a infância pobre no Piauí. Com a morte da mãe, a menina se sentiu sozinha. O pai, homem da roça, de poucas palavras, não lhe ouvia muito. Na verdade, palavras nunca foram a sua habilidade. Parentes que moravam na capital lhe diziam que aqui era bom para ser doméstica. Pagava-se salário mínimo e a patroa assinava a carteira. Ela arrumou meia dúzia de roupas que tinha e embarcou pra cá, com o consentimento do pai, que se despediu sem abraço e sem emoção. Nem a viu partir.
Brasília parecia distante demais para aquela menina cheia de sonhos. Mas o ônibus finalmente chegou. Ela, além das cozinhas alheias, arrumou um namorado. Foi paixão de menina-moça. O moço a convidou para morar com ele. Ela logo engravidou. Aos 18 anos, pariu o primeiro filho, João Vitor. A vida de “casada” logo entrou na rotina. E o príncipe, para ela, já não parecia tão príncipe assim. Ficou calado, como o pai. Ela, agora mãe, foi acolhida na casa de primos, na QNM 40 de Taguatinga.
Na casa dos parentes, um primo (de primeiro grau) despertou sua atenção. E logo estavam namorando. Ele gostava da filha dela. Ela gostava dele. Aos 21 anos, a moça pariu pela segunda vez. Nasceu Diana, a cara do pai, todo mundo diz. E a vida seguiu. Adriano Martins Olegário, o pai de Diana, se afeiçoou a João Vitor como se pai dele também fosse. E, pela primeira vez, Francisca Oliveira de Sousa, a moça do Piauí, teve a certeza de que tinha uma família. E talvez, de verdade, tenha se sentido feliz.
A moça voltou a trabalhar como doméstica. O companheiro perdera o emprego, tempos depois do nascimento da filha. As irmãs dele, na verdade cunhadas e primas da moça do Piauí, ajudavam no que podiam. A vida ficou contada. Fome não passaram, mas nada sobrou. Uma noite, enquanto dava o peito para a filha — que à época contava 10 meses —, uma dessas cunhadas achou estranha a barriga da moça. E lhe indagou: “Francisca, tu tá grávida?”.
Francisca deu um pinote: “Grávida? Nunca. Deus me livre!”. A doméstica Cristiane Maria Lopes, 33 anos, casada, quatro filhos, insistiu: “Tá, sim, olha o tamanho da tua barriga. menina!” Francisca bateu pé: “Eu tô amamentando, não posso tá grávida”. Cristiane pediu, então, que ela se deitasse no chão de barriga pra cima — teste infalível, ainda feito nesses interiores de meu Deus, quando mãe desconfia que filha anda aumentando o tamanho do bucho, mesmo enjoando com comida.
Francisca fez o que a cunhada e prima de primeiro grau pediu. Deitou-se no chão. “Logo vi um bolo grande. Não tive dúvida. Era gravidez sim.” Francisca suou frio. Como poderia estar grávida se não sentia enjoos, náuseas, nada que indicasse gestação? No dia seguinte, Cristiane disse que ela teria que fazer uma ecografia.
Como fazer? O companheiro e Francisca estavam desempregados. A cunhada-prima deixou atrasar a conta de luz e pagou o exame, que custou R$ 35. Precisava deixar também uma reserva para a passagem do ônibus circular. Não deu outra. O médico logo visualizou mais do que Francisca desejava ouvir. Ela estava grávida, sim. De cinco meses. E eram crianças. Só errou, mais ou menos, no sexo. Disse que, pela posição em que os bebês estavam, seriam dois meninos e uma menina.
Sem anestesia
Francisca saiu de lá emudecida. Adriano, o pai, quando soube, levou o maior susto da sua vida. “Eu nem sabia o que dizer. Tremi todo”, conta. E logo os dois se lembraram de uma noite, quando a camisinha que o rapaz usava rasgou. Foi ali que os trigêmeos foram concebidos. Cristiane, a cunhada-prima-irmã e agora mãe emprestada, levou Francisca ao Hospital Regional de Taguatinga (HRT), para a primeira consulta. Ali a paciente logo foi para a ala do pré-natal de alto risco.
Bateria de exames e mais uma ecografia. E novamente, pela posição dos bebês, a constatação: havia dois meninos e uma menina. Adriano, menos assustado, escolheu o nome: Diego, Davi e Daniela. Francisca gostou. Achou-os sonoros. Agora, era seguir as orientações médicas e esperar o momento do nascimento.
Manhã da última quarta-feira, 12. Francisca se sentiu estranha. “Parecia cólica”, conta, em entrevista exclusiva ao Correio, na manhã de ontem. “Pensei que fosse passar.” Era dia de consulta no HRT. Ela estava com 21 semanas de gestação. A prima-cunhada pediu para sair mais cedo do trabalho e a acompanhou ao hospital. Ao chegar lá, as dores aumentaram. A doméstica Cristiane não teve dúvida. Nem o médico, que mandou Francisca direto para o centro obstétrico. Tudo foi muito rápido.
Quinze minutos depois, sem anestesia, sem corte na entrada da vagina (feito em partos normais, para alargar e facilitar a passagem do bebê), o primeiro espirrou. Pela ordem de chegada, Diego — 1,4kg e 40cm. Logo em seguida, o segundo, Davi — 1,1kg e 40cm. E Daniela? Estava lá atrás, imprensada pelos outros dois. Os médicos tiveram muita dificuldade para retirar. Mas eis a grande surpresa: não era Daniela. Chegou Daniel —1,4kg e 43cm (o maiorzinho dos três). Abriu o bocão e chorou um choro de vida. Francisca também, de dor e imensa alegria.
Dois são iguaizinhos. O terceiro se parece com os dois, mas não é igual. “Foram duas placentas”, explica a neonatologista pediatra do HRT, Rita de Cássia Ejima, 47 anos. E continua, empolgada: “São saudáveis, perfeitos. Apenas Daniel ainda está na UTI porque precisa do respirador. Os outros dois já respiram sozinhos e estão no setor intermediário”.
“É raro, excepcional”
Os trigêmeos deverão ficar no HRT pelo menos por mais 30 dias. Francisca, embora de alta, permanecerá ao lado deles. “Eles precisam ganhar peso”, diz a pediatra. Diego e Davi tomam leite materno por meio de sonda — leite da mãe e do banco de leite do hospital. Daniel, até domingo, estava apenas no soro. Ontem, a dieta foi liberada: 11ml a cada três horas.
Enquanto isso, Francisca sonha amamentar os três filhos no peito. E assiste a suas mirradinhas crias virarem heróis no hospital. Nos corredores, as pessoas, ao verem as três pulseirinhas que ela carrega no pulso direito, perguntam-lhe: “Você é mãe dos trigêmeos?” Outra emenda: “Que Deus cuide bem dos seus filhos...”. Não falta torcida. Thaiça Magalhães, 26 anos, sem filhos, enfermeira supervisora da UTI, se derrete: “Eles são lindos e fortes...”. A pediatra Mariângela Pelicano, de 52 anos e 26 de profissão, se encanta com a possibilidade da vida: “Isso é que é fertilidade”.
Ouvida pelo Correio, a ginecologista e obstetra Rosaly Rulli Costa, chefe do Setor de Reprodução Humana do Hospital Regional da Asa Sul e membro da Sociedade Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia de Brasília, ficou maravilhada: “Isso é absolutamente excepcional. Ela é uma mulher privilegiada. Um caso raro de trigêmeos em concepção normal (sem inseminação artificial). Mesmo com inseminação, a chance de nascerem trigêmeos não passa de 20%”. E detalha: “O embrião se dividiu em dois”. Francisca prometeu a si mesma: “Vou ligar as trompas”.
Daqui a um mês, Francisca deverá sair do hospital carregando os trigêmeos. E voltará para a casa humilde na QNM Norte. O marido arrumou um emprego, no Ceasa. É faxineiro. Ganha um salário mínimo. Falta tudo aos bebês. “Desde que eles nasceram, não consigo dormir, de tanta preocupação. Mas vou ter fé. Vai dar certo”, diz a mãe, que fala ainda com timidez.
E no domingo, ela chorou, sozinha, à noite, depois que as outras mães dormiram: “De saudade dos meus outros dois filhos que ficaram em casa”. E fala no futuro, olhando com compaixão para os três filhos — tão frágeis e tão incrivelmente fortes: “Pode faltar tudo, menos amor. Espero que Deus dê a eles muita saúde e felicidade”. E ainda se espanta: “Tenho cinco filhos pra criar”. Esta é uma história de vida — muita vida — e milagre.
"Pode faltar tudo, menos amor. Espero que Deus dê a eles muita saúde e felicidade"
Francisca Sousa, mãe dos trigêmeos
Humanidade
Quem puder ajudar os bebês de Francisca com fraldas, roupinhas e outras coisas de primeira necessidade (menos leite artificial, mamadeiras e chupetas) pode ligar para Cristiane, a prima-cunhada-mãe: 3475-1952 e 9259-3027
Correiobraziliense.com.br
Marcelo Abreu
Publicação: 18/05/2010 08:03
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